As Finanças Mudaram, Mas os Riscos Mantêm-se

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  • Quase duas décadas após a crise financeira global de 2008, o sistema bancário parece mais seguro, mas a intermediação financeira mudou radicalmente;
  • Funções centrais como liquidez, crédito e pagamentos migraram dos bancos tradicionais para fundos de investimento, plataformas tecnológicas e redes descentralizadas;
  • Fundos mútuos e ETFs fornecem hoje liquidez equivalente ou superior à dos bancos, mas sem as mesmas salvaguardas institucionais;
  • Fintechs e big techs usam IA e big data para avaliar risco e conceder crédito, criando novas dependências e potenciais monopólios;
  • Stablecoins e sistemas de pagamentos instantâneos ampliaram a inclusão financeira, mas acrescentam riscos de corrida e de fragilidade sistémica;
  • A regulação continua desenhada para um mundo bancário, mas os riscos migraram para novas áreas fora do perímetro regulatório.

Mais de 15 anos após a crise de 2008, a arquitectura financeira global sofreu uma transformação estrutural: bancos mais capitalizados e supervisionados cedem espaço a fundos, plataformas tecnológicas e moedas digitais. Mas a advertência de Yao Zeng, professor da Wharton School, é clara: “As finanças mudaram, os riscos não desapareceram — apenas mudaram de lugar.”

Depois da crise financeira global, reguladores reforçaram os requisitos de capital e a supervisão dos bancos. O sistema bancário ganhou robustez, mas essa mesma transformação abriu caminho para novos protagonistas.

Hoje, grande parte da liquidez diária dos mercados já não provém dos bancos, mas de fundos de investimento. Fundos mútuos e ETFs oferecem resgates diários a investidores, embora sustentados em activos como obrigações corporativas, notoriamente ilíquidos. Na prática, prometem liquidez imediata sem dispor de mecanismos de seguro de depósitos ou acesso directo aos bancos centrais.

Em períodos de volatilidade, estes fundos podem tornar-se amplificadores de choques: são forçados a vender activos ilíquidos em mercados em queda, agravando a instabilidade. Os ETFs adicionam outra camada de complexidade: embora sejam maioritariamente indexados, o seu funcionamento real exige arbitragem activa de preços e liquidez, dependente de intermediários especializados. Quando estes perdem capacidade de balanço, a arbitragem falha e os preços afastam-se dos activos subjacentes.

O crédito também mudou de mãos. O uso de inteligência artificial e big data permitiu que fintechs e grandes plataformas digitais (como Ant Group, Amazon ou Mercado Libre) expandissem a concessão de empréstimos a consumidores e pequenas empresas. Para milhões de comerciantes, as “pegadas digitais” substituem hoje o colateral: quem usa pagamentos digitais e registos electrónicos detalhados consegue empréstimos mais baratos e com menor risco de incumprimento. Contudo, esta revolução vem acompanhada de riscos de concentração excessiva: as plataformas que dominam o “botão de checkout” também controlam o acesso ao crédito.

No campo dos pagamentos, a promessa original das criptomoedas nunca se concretizou — demasiado lentas, caras e voláteis. Mas as stablecoins trouxeram novo dinamismo, funcionando como meios de pagamento alternativos em economias sob pressão inflacionária, como a Argentina ou a Venezuela. Com capitalização superior a 200 mil milhões de dólares, USDT e USDC já se tornaram elementos relevantes nos fluxos de pagamentos internacionais. Ainda assim, operam sem seguro de depósitos ou garantias de emprestador de último recurso, mantendo-se vulneráveis a “corridas digitais”.

Em paralelo, sistemas de pagamentos instantâneos patrocinados por bancos centrais, como o Pix no Brasil ou a UPI na Índia, ganharam escala impressionante e provaram ser mais rápidos e inclusivos que os criptoativos. No entanto, trazem efeitos colaterais: obrigam bancos a manter mais liquidez imediata, reduzindo capacidade de crédito e, paradoxalmente, incentivando maior procura de risco em outros segmentos.

Implicações Macro-Financeiras

Yao Zeng identifica três grandes desafios:

  1. Fragmentação do sistema – funções críticas deslocaram-se para fora da regulação bancária, dificultando a coordenação internacional;
  2. Aceleração dos fluxos de capital – transacções e decisões que antes levavam dias agora ocorrem em minutos, mas os mecanismos de estabilização não acompanharam;
  3. Desalinhamento da política monetária – instrumentos tradicionais, desenhados para um sistema dominado por bancos e depósitos, tornam-se menos eficazes num ecossistema de plataformas, fundos e blockchains.

As inovações financeiras democratizaram o acesso, reduziram custos e aceleraram transacções. Porém, criaram um sistema mais rápido, fragmentado e menos protegido. O risco não desapareceu; mudou de lugar e tornou-se menos visível. A questão central para os reguladores é como reconfigurar a supervisão e os instrumentos de estabilidade para um mundo em que liquidez, crédito e pagamentos já não residem apenas nos bancos, mas num ecossistema difuso, dominado por fundos, fintechs, big techs e activos digitais.

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