
Entre o livro, o café e pastel de nata… lá vai a Minerva e volta o Continental
Quem hoje passar pelo Café Continental de certeza irá pensar que está num outro país. A única coisa que poderá amparar o (tal) visitante é o épico nome ainda grafado no local, mas agora combinado com outro, também histórico, Minerva Central.
Desde a noite da última quinta-feira de Novembro do ano que nos deixa há três meses a esquina entre as Avenidas 25 de Setembro e Samora Machel já não é a mesma, literalmente. Se o café e o pastel de nata eram as principais atracções – antes da Inspecção Nacional de Actividades Económicas (INAE) colocar cadeado por diversas anomalias – adicionou-se o livro no menu dos aperitivos.
Os dois embondeiros da capital de mãos dadas é uma grande novidade, mas o casamento entre a gastronomia e a literatura é óbvia, e pelo mundo é uma tradição já envelhecida.
“A gastronomia é cultura”, assume Vítor Gonçalves, retumbante. O Director Executivo da Minerva & Continental disse mais: “uma das coisas mais agradáveis que tu podes estar a fazer é ler um bom livro ao mesmo tempo que estás a tomar uma boa refeição.”
Seria aquele lugar agora um Banco se a Minerva – a livraria mais antiga do país – não tivesse se apressado. E as razões existem até de sobra: salvar um nome emblemático que é o Continental e permitir que se junte a literatura e a cultura e outros prazeres são algumas, diga-se, pertinentes.
E é justamente por isso que “Cultura e Outros Prazeres” resume por completo a essência desta nova casa, que por sinal foi bem-recebida pelo público, num dia que mais de 700 pessoas se acotovelavam para ver a inovação.
Mas não foi de todo fácil para se ter esses prazeres. A primeira acção foi aumentar o número de trabalhadores, de 40 para quase 100, com destaque para os especializados na área da cozinha e da fábrica (de pão e bolos). Não só, alargou-se o horário: das 5h30 às 21h30, contrariamente ao antigo local que era das 8h00 às 18h00. Ainda assim, há trabalhadores que começam as actividades às duas da manhã, a preparar o pão e os bolos… ou seja, o trabalho acabou ficando dividido por turnos.
E para se transformar a ruina que o Continental havia se tornado, com tudo de condenável que se dizia estar lá hospedado, para esta maravilha foi preponderante 160 milhões de meticais, onde 100 milhões foram para a compra do espaço (e do nome) e o restante para as obras e equipamento.
“O equipamento que aqui está é de topo, não só em Moçambique mas em qualquer lado do mundo. O ar-condicionado sobre o qual nós estamos, as arcas, os fornos na fábrica e as máquinas de café são do topo”, orgulha-se Gonçalves, defronte às câmaras do O.Económico.

Restaurante da Minerva e Continental
Continental: mais do que um Café
O nome Continental, desengane-se quem julgar o contrário, não foi o único artefacto que não foi tocado. Aliás, manter “Continental” é, acima de tudo, preservar a memória colectiva e dar a oportunidade das gerações vindouras conhecerem a sua história.
Quem olha para o tecto encontra ainda as vigas originais, um elemento marcante da antiga Continental. Os badalos de vacas, uma característica arquitectónica que se estendiam por vários estabelecimentos da Avenida 25 de Setembro à Praça de Touros, também foram mantidos como forma de manter a história.
“O Continental não é só um Café, pois no tempo colonial vinham aqui escritores, jornalistas, advogados que vinham conspirar, trocar suas ideias sobre a independência nacional”. E para alimentar com mais vitamina esta posição, Gonçalves, bem em jeito de questionamento, remata: “Em que outro sítio do país era possível encontrar o último governador geral de Moçambique do fascismo e Malangatana a beberem um café juntos?”
“Seria impossível para uma instituição que tem um carácter histórico como é a Minerva acabar o nome Continental”, reduz-se Gonçalves e atrela-se ao bom senso: “Não seria digno de nós”. Mas isso não significa que as lojas Minerva espalhadas pelo país ostentem o nome Continental, que fique claro.

Livros na secção dos Clássicos
Espaço ampliado, livros aumentados
São mil metros quadrados, mais de 700 ocupados por livros e os outros 300 repartidos entre a restauração, pastelaria, gelataria, informática e telecomunicações.
É um espaço onde até 400 pessoas podem circular à vontade, apreciando de tudo e, sentadas à mesa, ao mesmo tempo, leem um livro umas 100 enquanto degustam do melhor que há para agradar o paladar.
Mas não só o espaço ficou ampliado, o acervo também foi aumentado para 10 mil títulos, o dobro do que havia na antiga Minerva: “como podes ver há muito mais espaço aqui do que havia ali na Consiglieri Pedroso”, compara o director.

Livros em várias secções
O livro continua… o centro das atenções
Ainda que se tenham adicionado outros prazeres, os livros continuam sendo a primazia. Eles vêm de três lugares: Moçambique, Portugal e Brasil, este último na sua esmagadora maioria. O preço é o principal motivo que coloca Brasil como fonte preferencial. Há de todo tipo, desde que tenha qualidade claro, os clássicos, infantis, best sellers, literatura moçambicana, romances e livros técnicos.
Tal como qualquer negócio, está previsto um plano mas ainda não se pode falar de vendas, o certo é que o número supere o de 200 livros por dia. A estatística do ano antepassado que fez com que a Minerva fechasse as portas com 56 mil livros vendidos.
E tem de quase todos os preços, no intervalo entre 150 meticais e 20 mil meticais.
Juvenal Bucuane, Armando Artur e Luís Cezerilo são alguns escritores moçambicanos que podem ser “encontrados” na prateleira da Minerva & Continental. Comentando sobre o espaço num dia em que Ivone Soares lançava seu primeiro livro, disseram, quase em uníssono, que o novo espaço da livraria centenária é um pretexto para impulsionar o hábito de leitura e para impulsionar de forma mais vivaz a literatura moçambicana. Motivar os escritores, no entanto, é outro factor que não escapou aos comentários dos nossos entrevistados.
A livraria também entra no roteiro de casas com eventos culturais na Cidade de Maputo e começou mesmo com a feira de livro, onde houve debates, oficinas, lançamentos de livros, conversas e leituras.
E mal o ano arrancou, a esplanada da Livraria, um dos lugares que se abre para tertúlias, acolheu o lançamento da primeira obra de poesia com textos em braille. Da autoria de Énia Lipanga – a jovem artista moçambicana que tem a inclusão como o amplificador da sua voz – Sonolência e alguns Rabiscos contém poemas que foram declamados em línguas de sinais, livro que deixou aquele bocado da 25 de Setembro irreconhecível, num dia que o mundo se rendia a criatividade de Louis Braille: 4 de Janeiro.
A arte da luz (natural)
“Por baixo de nós é tudo novo”, assim começa a narração sobre a transformação da ruína em beldade que se pode contemplar hoje. A estrutura hidráulica da cidade, pelo menos no perímetro que se circunscreve a Minerva & Continental, foi refeita. Foi criado uma fossa com oito metros de profundidade para derivar a água para um outro sítio. Para além disso, existe um sistema montado para purificar a água usada. Trata-se de um sistema de três filtros electrónicos, que primeiro retira as impurezas minerais, depois as terrosas e depois todos os micróbios, fazendo passar a água em alta pressão por uma membrana especial.
“O que nós fizemos foi tirar todas as barreiras da entrada da luz natural”, explica o nosso interlocutor sobre a outra inovação. Hoje existem vidros especiais de pedra em pedra, o que fez com que o espaço ganhasse mais 30% de luz natural, diferente das luzes ladeadas por uma cachetaria.
Por outro lado, foram criados mais dois tipos de iluminação. A primeira é a led, circular, que cobre todo o restaurante e é mais branca e a segunda, por sua vez, permite focar o que estiver em cima do balcão e destaca os produtos, variando de cor, de acordo com a propaganda que se pretende.
Há de tudo bem visível, o mais importante. Os livros podem ser apreciados com a mesma “limpeza facial” que se pode escolher o melhor doce.
Pastel de nata é (ainda) a grande “nata” da casa
Por mais que o livro seja o personagem principal, a gastronomia não está aquém do ideal. “Há uma lista gigantesca de pratos”, sublinha Gonçalves, comparando com qualquer outro restaurante possível de visitar na capital moçambicana. Ora, mais do que a restauração, a marca da casa é a pastelaria. E a aposta pelos doces justifica-se pelo facto de nos anos 50, 60 e 70 o Continental ser conhecido pelo seu pastel de nata, principal atractivo de pessoas até da África do Sul e, pelos vistos, a preocupação é que eles voltem para saborear o doce.

Vítor Gonçalves – Director Executivo da Minerva & Continental
Aliás, não é à toa que a história da Minerva e Continental, fixada logo à entrada, pode ser lida em português e inglês. “Os turistas desembarcam aqui nos cruzeiros”, recorda Gonçalves. E é também para eles que este espaço existe. Ah, sim: este é mais um ponto turístico que desde aquele Novembro é de uma preferência acentuada na Cidade de Maputo.
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