Museu Mafalala: o coração de um bairro que ainda tem muito por contar

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O.ECONÓMICO despe-se do casaco dos números, da gravata dos gráficos e da camisa das tabelas para render homenagem a um bairro cuja trajectória confude-se com a de todo o país (não só da cidade de Maputo), se quisermos falar da parte negra da história ou, também, fazer uma radiografia do drama dos suburbanos.

Eram quase meio-dia quando aterrámos ao bairro, numa viagem digna de turistas. E ainda ganhámos uma excursão por alguns pontos que nos testemunham a herança histórica de vários povos que ali se cruzam desde a existência daquele imaginário periférico.

Diferentemente da outra parte da Marien Ngouabi – a grande fronteira entre “a cidade de lata e de cimento” – as crianças, com a amabilidade das férias, estavam a brincar desnorteadas, e o pneu era o principal brinquedo. Uma (senão duas) é que andava de bicicleta e à sua atrás, obviamente, uma pilha de meninos seguia satisfatoriamente, ainda que um nó de amargura lhes perseguisse à garganta pela vontade de montar no veículo.

A barasa do Museu Mafalala – o nosso principal destino – era como se fosse o lugar que faltasse no bairro. Ali, numa pequena rampa, os meninos punham as rodas de bicicleta a escorregar.

Desengane-se quem pensar que são apenas crianças que se tomam por amores pela barasa, as senhoras também encontraram no tecto daquele passeio uma sombra perfeita para desmanchar as tranças ou renovar a beleza (macua), ou para atirar uma conversa sobre as tragédias da vida, senão alegrias.

E os outros? Cada um no seu melhor: na banca de hortícolas, na barraca, na oficina de automóveis ou na Mesquita.

Quem nos recebe é o mentor do Museu e quem carrega a espinhosa tarefa de dirigir àquele monumento, que não só é património da Associação Iverca, mas de toda a comunidade da Mafalala. Ivan Laranjeira é o nome que anda umbilicalmente ligado ao esforço da preservação da memória do bairro… e já lá correm dez anos. 

Museu Mafalala: o primeiro artefacto

Laranjeira abriu-nos às portas num dia em que o Museu está fechado a visita. Quanto privilégio! Se fosse entre terça e domingo o ambiente seria mais agitado, das 10h00 às 19h00. Domingo, apenas, teríamos ficado até às 15h00.

Uma das suas primeiras abordagens foi sobre à sua imponente arquitectura, o que é na verdade o primeiro artefacto do próprio Museu.

Um trabalho para lá de esbelto concebido por Remígio Chilaúle, mas que começou em 2013 com a auscultação da comunidade, bem como a aturada jornada de procura de parceiros e potenciais investidores.

Laranjeira, com um tom de quem só respira Mafalala, conta-nos, como que a ler no seu interior, tudo sobre o Museu (e mais alguma coisa).

A nossa conversa de aproximadamente duas horas iniciou precisamente com o que toca à arte do edifício, uma arquitectura que não desvirtua à íntima característica do bairro.

Tanto através da madeira e do zinco, o que para Laranjeira pressupõe um discurso metafórico sobre a tradição e a essência do passado; como através do cimento que representa a tendência actual que são as casas de alvenaria; bem como um olhar ao futuro através do vidro que separa o zinco do cimento.

Mas não só, a ocupação do espaço no Bairro da Mafalala foi levado em conta: “o Museu foi construído em três volumes e entre eles temos um beco – representado por uma passagem estreita – onde as pessoas, à medida que vão andando pela Mafalala, notam o planeamento irregular através de becos”, sustenta o director antes de colocarmos os pés pelo edifício adentro.

Ao tomarmos os parcos degraus a lápide à esquerda convida-nos a testemunhar a assinatura do Chefe de Estado, Filipe Jacinto Nyusi, fixada no dia 14 de Junho.

Não podia ter sido outra pessoa a entrar pela primeira vez naquele espaço, dado as marcas políticas que o bairro carrega, fundamentais para a luta contra a opressão em Moçambique, mas também por ser a metonímia de um discurso que cruza o centro e norte do país.

Antes, segundo o nosso guia, entrámos na recepção. Ainda assim torna-se no primeiro espaço de exposição.

Debruça-se Laranjeira: está ali representado o Império de Gaza, como sendo os “donos da terra”, antes da presença europeia. É sempre na perspectiva da cidade, mas antes dela materializar-se (já) existiam pessoas e tinham como seu líder máximo Ngungunhana, por isso, uma fotografia digna da nossa realeza está fixa numa das paredes e a explicação da migração dos povos bantu e a zona em que pertenciam inauguram o nosso périplo na casa que se abre para todos.

Um sonho que durou seis anos…

Foram necessários seis anos para que os muros levantassem o vôo, tanto os de pedra castanha, de zinco roxo, madeira branca ou de vidro transparente.

Uma viagem que foi preponderante uma paragem para auscultar a comunidade e procurar potenciais parceiros que investissem 200 mil euros – valor repartido entre a União Europeia e a Cooperação Alemã.

O discurso do Museu

O Museu Mafalala (não da Mafalala) discute a cidade de Maputo. Entretanto, pela dimensão das pessoas que passaram e pelos eventos históricos que tiveram o seu epicentro no bairro tornou-se um lugar plural, onde todos os moçambicanos se revêem. “E nós procuramos trazer este debate ao de cima, explicando como Maputo politicamente, economicamente, socialmente, culturalmente e artisticamente se desenvolve ao longo do tempo”, descreve Laranjeira. A outra abordagem do Museu, segundo o director, é a visão da cidade sob ponto de vista urbano, como inclui os assentamentos informais no dia-a-dia e como discute os desafios da comunidade no que toca a infraesturas.

Ou seja, não se trata de um Museu tradicional, sobretudo por incorporar vários elementos, como é o caso de uma galeria e um espaço que sirva de montra artística para os residentes de Mafalala e não só, tendo em conta a falta de palcos no subúrbio.

Um dos pretextos que norteou a sua curadoria foi o papel das pessoas que viveram no bairro. Também, Laranjeira olhou para elementos como a cidade, ou como eram as pessoas da Mafalala, as suas práticas, o seu exercício laboral, as religiões; a migração; o nacionalismo, o despertar da independência através da poesia, da música e da imprensa; bem como a marrabenta e o desporto.

Esta é uma história que se encontra na maior sala do edfício, contada através de fotografias, textos, extractos de jornais e demais artefactos que simbolizam o passado (e o presente) de gente que cruzou a Mafalala, este guardião da liberdade e voz incansável na luta pelos direitos primários do homem.

Trata-se de uma exposição permanente, onde Laranjeira com a ajuda do seu irmão, separou os conteúdos em seis subtemas, mesmo para facilitar o entendimento de quem ali coloca os olhos da curiosidade, nomeadamente: A Cidade e o Trabalho Migratório, Os Limites da Cidade e a Proibição do Material Inflamável, Multiculturalismo, O Nacionalismo, Música Urbana e Desporto.

Ivan Laranjeira – Director do Museu Mafalala

A outra sala, ligeiramente pequena, é de exposições temporárias. Quando o Museu abriu as portas, tinha patente “Futuros da Mafalala”, uma mostra que discute como a Mafalala, tal como o título sugere, pode evoluir, tendo em conta três cenários. Mas depois disso, o espaço está livre para receber outras propostas artísticas.

O outro lado do Museu

Ainda que tenha sido um tanto trabalhoso ter financiamento para a construção do Museu, assume-se como mais difícil ainda gerir um empreendimento que nas contas feitas, ainda que sem a máquina calculadora, despesas rondam nos 300 mil meticais ao mês.

Para fazer face a essa preocupação, o Museu comporta uma componente turística que, aliás, há muito é desenvolvida através de visitas guiadas pelo bairro. Por isso, o segundo piso do edifício é praticamente reservado ao alojamento – com um quarto suíte, outro normal e um dormitório com 10 camas.

Esta acomodação é uma das alternativas para cobrir a manuntenção do espaço e o pagamento de salário a 15 colaboradores.

É, também, esta vertente de acomodação um desiderato do próprio bairro que pauta pela hospitalidade e recebe a todos aqueles que queiram aprofundar a sua história.

Entretanto, é prematuro falar de benefícios financeiros do Museu. O que há, claramente, é um benefício comunitário.

Obra inacabada

As portas do Museu estão abertas há quatro meses e desde lá somam-se mais de 4 mil visitantes. Um número que surpreende ao director, dado a realidade moçambicana: “isso deixa-nos muito orgulhosos e estamos satisfeitos. O que se pretendia está a ser largamente alcançado”.

Ainda que o sonho de erguer as paredes e colocar lá as estórias tenha se tornado real, Laranjeira assume que vêm outros sonhos: manter o espaço activo e relevante no que diz respeito a arte e memória do país. Nesse quesito, o curador é da opinião que o Museu sempre será uma obra inacabada.

“Há sempre uma estória nova que a comunidade nos traz; há sempre um objecto ou documento a acrescentar à exposição”, pois se trata de um “processo contínuo à semelhança de um bebé que vai crescendo gradualmente”, e nisso o audiovisual é o material que falta.

Chegado a esta parte, portanto, a avaliação que se faz é positiva. As pessoas que vêm de quase toda a parte para conhecer o sítio e os outros actores culturais que já se aproximam para realizar eventos são prova de que não se trata apenas de um projecto que se circunscreve ao perímetro da Mafalala.

Veja o vídeo da matéria a seguir:

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